Early Childhood Matters 2017

O estudo “Crianças nas Comunidades”: em quê o local de moradia diferencia o desenvolvimento das crianças?

Sharon Goldfeld, Professor do Departamento de Pediatria, Universidade de Melbourne e Diretor Adjunto do Centro de Saúde Infantil Comunitária, Royal Children’s Hospital, Melbourne, Austrália & Karen Villanueva, Pesquisadora, Instituto de Pesquisa Infantil Murdoch Children’s, Melbourne, Austrália

Até o momento, as pesquisas sobre desenvolvimento da primeira infância têm se concentrado principalmente em ambientes familiares e escolares. No entanto, para criar ambientes positivos que facilitam o desenvolvimento ideal das crianças pequenas, nós precisamos entender melhor a contribuição de todos os ambientes nos quais elas crescem e se desenvolvem. Todavia, nota-se que houve até hoje uma falta de rigorosos estudos investigativos sobre os efeitos do nível comunitário no desenvolvimento infantil, estudos também conhecidos como “pesquisas de efeitos de vizinhança”. O estudo “Crianças nas Comunidades” (ou Kids in Communities em inglês) espera contribuir com este campo de pesquisa, identificando quais fatores podem influenciar o desenvolvimento das crianças (Goldfeld et al., 2015).

Em todo o planeta mais de 50% das pessoas vivem em ambientes urbanos (Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas, 2014), o que nos fornece um cenário importante no qual as crianças crescem e se desenvolvem. Em resposta a situações de populações em rápido crescimento, as agendas políticas defendem a necessidade de cidades habitáveis e “amigas das crianças”, que buscam promover e proteger o bem-estar infantil (UNICEF, Austrália, online). No entanto, há orientações e evidências limitadas para apoiar o que seria, na prática, o termo “amigável às crianças” no que se refere às crianças pequenas.

Uma coisa que sabemos das evidências existentes é que a desvantagem socioeconômica é um problema-chave: pesquisas mostram que em comunidades desfavorecidas, a falta de recursos e oportunidades pode resultar em piores resultados de desenvolvimento infantil, que podem persistir de uma geração para outra (Gupta et al., 2007). Os estudos também apontam para alguns fatores que promovem o desenvolvimento infantil positivo: pais e famílias envolvidos, organizações comunitárias ativas e bairros seguros para caminhar, com bons locais para brincar, tudo isso pode ajudar, mesmo em comunidades de baixa renda (Zubrick et al., 2005; Engle et al., 2011; Ward et al., 2016).

Mas precisamos entender muito mais sobre como os fatores de nível comunitário afetam o desenvolvimento da criança e, o mais importante, quais fatores podem ser modificáveis. Este conhecimento é essencial para desenvolver políticas e programas mais eficazes que possam melhorar os resultados do desenvolvimento infantil em todas as comunidades. Mais especificamente, podemos informar as políticas públicas, tais como o desenho e planejamento urbano , políticas de saúde pública, e políticas de serviços de saúde infantil. O crescente interesse político em intervenções centradas na localização sugere que seja oportuno ter evidências que apoiem a saúde e o desenvolvimento das crianças ao nível da comunidade.

O estudo “Crianças nas Comunidades”

O estudo “Crianças nas Comunidades”, atualmente em curso na Austrália, tenta responder a pergunta: “As comunidades podem fazer a diferença no desenvolvimento de crianças pequenas?” (Goldfeld et al., 2015). Isso permitirá o desenvolvimento de indicadores e medidas que possam ser utilizadas pelas comunidades, formuladores de políticas e outras partes interessadas para o desenvolvimento de políticas e programas que visem melhorar o desenvolvimento infantil em suas comunidades.

O programa baseia-se em uma visão ecológica do desenvolvimento infantil, o que significa que ele se concentra nos muitos fatores que operam em diferentes níveis da sociedade, incluindo a família da criança, a comunidade e as políticas do governo local, estadual e federal. O estudo utiliza uma abordagem quantitativa e qualitativa multimétodo inovadora (Goldfeld et al., 2017) para medir fatores dentro de cinco campos comunitários separados (mas relacionados): ambientes socioeconômicos, físicos, de serviços, sociais e de governança.

Figura 1: Estrutura conceitual do estudo “Crianças nas Comunidades”

Ambiente socioeconômico
A evidência mais sólida que apoia as relações existentes entre a comunidade e o desenvolvimento da primeira infância são os marcadores indicativos das desvantagens / vantagens da vizinhança, como riqueza, pobreza, moradia estável e educação (Bradley e Corwyn, 2002). Em conjunto com considerações demográficas tais como grupos minoritários e etnicidade, este domínio concentra-se no ambiente sociodemográfico das comunidades, que pode ter impactos potenciais para as crianças nos principais domínios de desenvolvimento, como saúde física e bem-estar, e competências sociais e emocionais.

Ambiente físico
O “Crianças nas Comunidades”: concentrou-se no ambiente construído, “parte do ambiente físico construído pela atividade humana” (Saelens e Handy, 2008). O ambiente construído inclui habitação, segurança viária, transporte público e disponibilidade e proximidade de recursos como parques, infraestrutura social (por exemplo, escolas e centros de cuidados infantis) e outros espaços e lugares onde as crianças brincam e interagem com outras pessoas (Villanueva et al., 2016)

Ambiente de Serviços
A prestação de serviços inclui fatores como quantidade, qualidade, acesso e coordenação de serviços (Sampson et al., 2002). Este domínio concentra-se no que é realmente oferecido ao nível da comunidade, e também propicia soluções de políticas tangíveis. O foco do “Crianças nas Comunidades” está em serviços que geralmente são oferecidos localmente e atendem a famílias e à primeira infância (por exemplo, escolas primárias, centros de assistência à criança, médicos generalistas). Uma maior compreensão das influências do domínio físico e de serviços pode ser usada por pesquisadores, profissionais, provedores de serviços, famílias e comunidades para começar a pensar sobre como é possível intervir no ambiente construído e no setor de serviços com o objetivo de promover melhores resultados para o desenvolvimento das crianças.

Ambiente social
A teoria ecossistêmica destaca o papel das influências socioambientais, e inclui fatores como capital social, laços sociais e coesão da comunidade, delinquência e segurança, apego ao bairro e a percepção de sua amigabilidade às crianças. Existe uma certa sobreposição com os domínios físico e de serviço, o que não é surpreendente. Os ambientes sociais em que as crianças crescem, desenvolvem e aprendem a interagir têm um impacto potencialmente maior nos resultados de seu desenvolvimento (Goldfeld et al., 2015).

Ambiente de governança
O domínio de governança inclui o envolvimento dos cidadãos e a participação cívica, as políticas locais sobre desenvolvimento da primeira infância, lideranças chave das comunidades e parcerias para a primeira infância. Uma governança e liderança ampliada, pode ser facilitada por “líderes” locais mais próximos (como no governo local), por prestadores de serviços e outras partes interessadas que atuam em fóruns sobre o desenvolvimento da primeira infância ou que pressionam por investimentos e mudanças no plano local. Ainda que haja poucas evidências que demonstrem claramente o vínculo entre a governança e a melhora do desenvolvimento infantil, é evidente que as estruturas de governança podem desempenhar um papel fundamental na condução de mudanças a nível local (O’Toole, 2003).

Foto: © iStock.com / FatCamera

Conclusão

Reduzir a vulnerabilidade no desenvolvimento infantil, e estabelecer trajetórias ideais para o desenvolvimento da primeira infância é um objetivo político digno. Um bom começo para a vida é essencial (Chan, 2013). A primeira infância é um momento em que os ambientes podem influenciar de maneira crítica o desenvolvimento do cérebro (Hertzman, 2004). Crianças com ambientes estimulantes e positivos no início da vida (desde o nascimento até aos 8 anos) têm bases ideais para o contínuo desenvolvimento físico, social, emocional e cognitivo (Heckman, 2006).

Com uma pesquisa prévia com foco em fatores que envolvam criança, família e escola, é oportuno considerar os ambientes de nível comunitário como um mecanismo importante para melhorar os resultados de desenvolvimento. Se pudermos entender como o local onde as crianças vivem pode influenciar positivamente seu desenvolvimento, podemos a partir daí pensar sobre qual a melhor forma de orientar os investimentos que promovam positivamente o desenvolvimento da primeira infância. Pesquisas como as relacionadas ao programa “Crianças nas Comunidades” sugerem pontos de ação potencialmente modificáveis para se alcançar intervenções com maior impacto.


As referências podem ser encontradas na versão em PDF do artigo.

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