Lições sobre políticas para fortalecer e apoiar os profissionais da primeira infância
Apesar do crescente impulso das iniciativas destinadas a promover o desenvolvimento da primeira infância em todo o mundo, muitos países continuam a lutar para oferecer educação de qualidade, saúde e serviços de proteção social para todas as crianças e suas famílias (UNESCO, 2017; UNICEF, 2017). Melhorar a qualidade das experiências da primeira infância depende do fortalecimento das habilidades, do desenvolvimento profissional e das condições de emprego daqueles que trabalham com crianças pequenas. No entanto, muitas vezes os trabalhadores que lidam com a primeira infância são subvalorizados, mal pagos e inadequadamente preparados (Urban et al., 2011; Organização Internacional do Trabalho (OIT), 2012; Neuman et al., 2015). Isso levanta um número de questões sobre como apoiar efetivamente esses trabalhadores: o que tais profissionais e para-profissionais precisam saber e ser capazes de fazer para alcançar êxito em suas funções? O que motiva os profissionais que lidam com a primeira infância no seu dia a dia? Quais políticas são necessárias para apoiar em larga escala uma força de trabalho qualificada e estável?
Para abordar essas questões, a Iniciativa da Força de Trabalho da Primeira Infância (ECWI – Early Childhood Workforce Initiative) realizou recentemente três estudos detalhados sobre os profissionais que atuam com a primeira infância no Peru, África do Sul e Ucrânia. A ECWI é uma iniciativa global que reúne diversas partes interessadas, copresidida pelo R4D e pela International Step by Step Associaton (ISSA), e que tem a missão de promover serviços equitativos e de alta qualidade para os profissionais que trabalham com famílias e crianças pequenas, e também para os que supervisionam e orientam esses profissionais. A ECWI apoia o trabalho analítico rigoroso, o desenvolvimento de novas ferramentas e recursos, além de fomentar esforços de comunicação para compartilhar as melhores práticas por meio de seminários pela internet e um centro de conhecimento on-line, com atividades de aprendizado que envolvem formuladores de políticas, profissionais e especialistas, com ênfase na troca entre países do Sul e do Norte do mundo.
Os estudos ajudam a esclarecer as dificuldades que afetam a qualidade e disponibilidade dos profissionais que trabalham com a primeira infância, oferecendo uma série de recomendações para superar os problemas em cada país. Cada estudo concentrou-se em trabalhadores que apoiam crianças e suas famílias. Estudamos o programa de visitas domiciliares ‘Cuna Más’ no Peru (Josephson et al., 2017), os serviços de saúde na África do Sul nos primeiros 1.000 dias de vida (Hatipoglu, 2018) e os programas pré-escolares na Ucrânia (Putcha et al., 2018). Em cada país, as equipes de pesquisa realizaram entrevistas com informantes-chave e com grupos focais heterogêneos com profissionais da primeira infância, pais, autoridades locais e nacionais e representantes de organizações profissionais e de formação. Usando métodos qualitativos, os dados colhidos foram analisados incorporando na análise informações de custos onde era possível. Juntos, esses três estudos oferecem um conjunto de lições internacionais que servirão de base de consulta para diversos países, para que possam melhorar as políticas de formação dos trabalhadores da primeira infância em diversos contextos.
Os papéis e responsabilidades dos profissionais que atuam com a primeira infância em cada país que estudamos são bem diferentes, assim como os contextos em que trabalham. Eles variam quanto à faixa etária, ao local de trabalho (residências, centros infantis ou escolas), ao grau de formalidade da função e aos tipos de serviços prestados. No Peru, por exemplo, os visitantes domiciliares do programa ‘Cuna Más’ são voluntários recrutados que viajam para residências em áreas rurais para realizar atividades de desenvolvimento informais com crianças menores de três anos de idade, enquanto os professores dos jardins da infância da Ucrânia são profissionais altamente qualificados que trabalham dentro de um sistema nacional de educação infantil estabelecido e financiado pelo estado. Na África do Sul, as funções dos Agentes Comunitários de Saúde (CHW, na sigla em inglês) estão evoluindo para implementar serviços nos primeiros 1000 dias de vida, integrando às tarefas atuais informações sobre estimulação precoce, educação dos filhos, e saúde materna e infantil.
Apesar dessas diferenças, os trabalhadores da primeira infância que estudamos nesses três países compartilham vários desafios:
1 Expandir funções e responsabilidades
À medida que os trabalhadores da primeira infância assumem novas responsabilidades para promover o desenvolvimento infantil, eles precisam de novas formas de apoio e orientação.
Nos três países, as funções das pessoas que trabalham com crianças pequenas estão se expandindo e suas responsabilidades são cada vez mais complexas. Na África do Sul, por exemplo, os CHWs necessitam conhecer e abordar tópicos abrangentes que vão desde os cuidados pré-natais e neonatais até a gestão de doenças crônicas. Como parte da ênfase nos primeiros 1000 Dias, a recém-introduzida Política Nacional Integrada de Desenvolvimento da Primeira Infância apela para a integração de mensagens e atividades de estimulação precoce em casa e nas visitas domiciliares com as famílias (República da África do Sul, 2015). Surgiram questões sobre a melhor maneira de assegurar que os CHWs tenham as habilidades e o apoio necessários para dar conta dessas tarefas adicionais, pois terão de expandir seu foco nos serviços de saúde e supervisão do crescimento para incluir “cuidados afetivos”. Na Ucrânia, uma recente mudança na política em relação à inclusão de crianças com necessidades especiais dentro dos jardins de infância tem sido um desafio para os professores conseguirem o melhor resultado, uma vez que não há treinamento específico a respeito, nem número suficiente de assistentes de ensino. Tanto no Peru quanto na Ucrânia, os funcionários da primeira infância identificaram que, para realizar seu trabalho com eficácia, eles precisavam de mais formação e orientação sobre engajamento e comunicação com os pais.
2. Treinamento prático contínuo e supervisão necessária
Além de melhorar o acesso a uma formação relevante para os profissionais que atuam diretamente com a primeira infância, é preciso também atenção a seus supervisores e orientadores.
Os trabalhadores da linha de frente aprendem melhor quando o treinamento é prático e reforçado regularmente (Mitter e Putcha, 2018). Na Ucrânia, os professores de pré-escola têm acesso regular a palestras teóricas de formação a cada cinco anos, mas eles demonstram muito mais interesse pelas oportunidades de aprender de forma prática com seus parceiros de trabalho. Na África do Sul, onde os CHWs têm níveis variados de educação formal, o material de treinamento precisa ser mais prático e menos teórico. Além de melhor acesso a cursos de treinamento relevantes, os trabalhadores da linha de frente, para serem profissionais eficazes da primeira infância, precisam também do apoio regular e eficaz de supervisores e mentores da área. O apoio contínuo, incluindo supervisão de apoio, treinamento e orientação são particularmente importantes para os paraprofissionais, que muitas vezes têm formação educacional limitada e uma menor preparação inicial (Mitter and Putcha, 2018). No entanto, é comum que os supervisores e orientadores se concentrem mais em garantir o cumprimento do programa do que em apoiar os trabalhadores da linha de frente. Na Ucrânia, os “metodologistas” – professores experientes que fornecem orientação regular em sala de aula e apoio a novos professores – são quadros adequados para prover orientação pedagógica sobre uma variedade de tópicos, incluindo trabalho com crianças com necessidades especiais, mas eles também precisam de formação e informações atualizadas. Foi observado por um instrutor de professores que, “em um ano, mesmo em meio ano, tudo que é visto ou ouvido por um professor da pré-escola na sala já é antiquado. É como um celular”. O Peru oferece um modelo em potencial. Os trabalhadores que realizaram visitas domiciliares em nosso estudo, expressaram seu agradecimento pelo conteúdo rico e pela forma envolvente das sessões de treinamento, bem como o foco na contínua supervisão e apoio que receberam da equipe regional. Os supervisores regionais acompanharam os visitantes domiciliares em duas visitas por mês para observar seu trabalho, discutir desafios, além de fornecer avaliações e orientações.

3 Desafiando as condições de trabalho do dia a dia
Embora os trabalhadores da primeira infância tenham expressado forte motivação para atuar, diariamente eles enfrentam condições de trabalho difíceis.
Os profissionais se consideram agentes positivos de mudança e veem o valor e os efeitos diretos de seu trabalho na melhoria da saúde e no desenvolvimento das crianças pequenas e suas famílias. Sua motivação não está ligada à compensação econômica, mas deve-se tomar cuidado para não explorar esse fator. Em todos os três países, foram encontrados salários baixos, carga horária de trabalho intensa (por exemplo, o alto número de casos atendidos por trabalhadores comunitários no Peru e na África do Sul e o grande número de estudantes por turma na Ucrânia), como também condições de trabalho desafiadoras (como contratos curtos, viagens longas, preocupações com a segurança, horário de trabalho atípico). Tais problemas afetam a moral dos trabalhadores e sua capacidade de cumprir suas responsabilidades de forma eficaz. Trabalhadores comunitários do Peru e da África do Sul citaram outros desafios diários, como materiais insuficientes e/ou inadequados (por exemplo, uniformes e kits) e recursos escassos (subsídios insuficientes para cobrir despesas de transporte e celular), enquanto professores de jardim de infância da Ucrânia expressaram a questão da burocracia excessiva. No Peru, os trabalhadores que fazem visita domiciliar lutam para conciliar sua função no programa Cuna Más, pelo qual recebem apenas uma pequena quantia, com a necessidade de obter outras rendas e cumprir suas responsabilidades familiares. Vários entrevistados citaram um aumento na rotatividade do pessoal como resultado. Um dos profissionais chegou a afirmar: “O salário é muito pequeno…as dez horas que eles dizem…não trabalhamos dez. Se nos pagassem mais, não buscaríamos outras opções”. Dependendo do desafio, são necessários diferentes níveis de investimento (por exemplo, o aumento do salário tende a ter um custo mais alto do que o investimento em novos materiais). No entanto, melhorar as condições de trabalho diárias, bem como abordar a remuneração e o estatuto da profissão, provavelmente aumentaria a motivação dos funcionários e melhoraria a qualidade dos programas de desenvolvimento da primeira infância (OCDE,2012; Eurofound, 2015).
4 Percursos de uma carreira limitada
Carreiras limitadas dificultam o recrutamento e a melhoria contínua dos profissionais.
Nos três países não se vê uma relação clara entre acumular experiência e formação adicional e obter aumentos de salários ou acessar oportunidades de avanço na carreira. A isso se somam os salários insuficientes e o baixo status da profissão, o que resulta em dificuldades para contratar e reter trabalhadores qualificados. Na Ucrânia, por exemplo, é difícil recrutar candidatos qualificados para lecionar na pré-escola, particularmente em áreas urbanas, onde há alternativas de emprego mais atraentes e melhor remuneradas. Um número substancial de professores formados para o ensino pré-escolar opta por não atuar na área após a graduação. Apesar do sistema educacional oferecer alternativas para professores e equipe de apoio evoluírem profissionalmente, na prática há poucas oportunidades de progressão na carreira. Embora alguns dos profissionais que fazem visitas domiciliares no Peru tenham dito que cresceram pessoal e profissionalmente apenas trabalhando com o programa, normalmente há poucos incentivos (como oportunidades de ascensão ou para tornarem-se profissionais do programa) para os trabalhadores comunitários investirem na própria formação em melhorar suas competências ao longo do tempo. Oferecer oportunidades de ascensão na carreira ligadas ao reconhecimento financeiro ou não, é importante para o recrutamento, retenção e melhoria contínua da qualidade dos profissionais que trabalham com a primeira infância (Mitter e Putcha, 2018).
Analisando os desafios
À medida que mais e mais países buscam expandir e melhorar os serviços para a primeira infância, a função essencial dos profissionais que trabalham na área não pode mais ser negligenciada. Os quatro problemas citados podem parecer difíceis de resolver, especialmente considerando que os decisores políticos geralmente trabalham com recursos orçamentários restritos. Embora cada um desses aspectos seja importante para garantir profissionais fortes e bem apoiados, cada país precisará tomar decisões difíceis para determinar quais priorizar.
Felizmente, espera-se que investimentos adicionais em formação, melhores salários e suporte contínuo se traduzam em uma maior eficiência, reduzindo a rotatividade e a perda de trabalhadores qualificados que deixam (ou nunca entram) a área de atuação. Ao mesmo tempo, trabalhadores bem remunerados e motivados estão mais propensos a promover relacionamentos estáveis e positivos com crianças pequenas, algo fundamental para promover o desenvolvimento e a aprendizagem precoces e saudáveis.
As referências podem ser encontradas na versão em PDF do artigo.