Como chegar até as crianças pequenas: uma abordagem para a integração do sistema de saúde
As bases para a saúde e o bem-estar de um ser humano são definidas durante seus primeiros anos de vida, desde a gravidez até o terceiro aniversário de nascimento. Recentes estudos científicos ressaltam os benefícios transformadores que podem ser obtidos durante esse período por meio de bons cuidados, estímulos e oportunidades de aprendizado: as crianças terão mais chances de crescer e se tornarem adultos mais saudáveis, com melhor nível educacional e uma melhor situação socioeconômica. Na maioria dos locais com poucos recursos, no entanto, os investimentos em desenvolvimento da primeira infância ainda se concentram principalmente em crianças em idade pré-escolar, deixando de lado a fase crítica dos primeiros anos de vida, quando os atrasos no desenvolvimento podem ser reduzido ou até mesmo evitados.
Desde 2012, a organização PATH tem trabalhado para preencher essa lacuna, defendendo uma abordagem que usa os sistemas de saúde para ampliar os serviços de desenvolvimento da primeira infância para as crianças mais novas. Esse trabalho começou de forma relativamente isolada, uma vez que a PATH costumava ser a única voz em escala nacional que defendia uma série de mudanças para as quais os formuladores de políticas e outras pessoas influentes ainda não estavam preparados para aceitar. Mas nos últimos dois anos esse panorama mudou dramaticamente, tanto em escala global como nacional, a ponto de hoje se buscar garantir não só a sobrevivência das crianças, como também sua prosperidade.
Inovando para alcançar as crianças pequenas
Devido ao trabalho de longa data da PATH em prol da melhoria da saúde e da nutrição infantil, detectamos uma oportunidade para abordar de maneira mais ampla o desenvolvimento da primeira infância no contexto do sistema de saúde. Em 2012, um estudo inicial das políticas e dos programas de desenvolvimento da primeira infância no Quênia, em Moçambique e na África do Sul confirmou nossas suspeitas: fora do setor de saúde havia poucos serviços destinados a crianças menores de 3 anos de idade. No ano seguinte, começamos por adaptar os modelos de desenvolvimento da primeira infância ao sistema de saúde e a testar a estrutura do Child Development Care da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Unicef para formar os trabalhadores desses serviços no Quênia e em Moçambique.
Apesar do progresso da PATH em demonstrar a viabilidade da nova abordagem e em aumentar gradualmente o escopo do programa, o setor de saúde não reconhecia amplamente a relevância dessas intervenções na primeira infância, e a possibilidade de ter políticas e um compromisso claro do governo para promover uma expansão em grande escala ainda parecia distante. No entanto, na série sobre o desenvolvimento da primeira infância da Lancet, publicada em 2016, afirmou-se que o sistema de saúde era o principal ponto de entrada para chegar até as crianças pequenas e seus cuidadores. Da mesma forma, o conceito de “cuidado afetivo” (abrangendo saúde, nutrição, atenção às necessidades, aprendizado precoce e segurança) foi utilizado pela primeira vez, entendido como um conjunto essencial de intervenções interconectadas, necessárias para garantir o desenvolvimento ideal. A publicação destacou a urgência de integrar essas intervenções nos serviços de saúde de rotina e serviu para acelerar o trabalho da PATH, uma vez que promoveu a criação de alianças com a OMS, UNICEF e numerosos governos nacionais que vinham mostrando cada vez mais interesse no assunto.
Um modelo adaptativo
Com base nos dados disponíveis, na experiência e nas necessidades do país, a PATH usa o sistema de saúde como ponto de entrada para ajudar as famílias a garantir a prosperidade de seus filhos. Para isso, uma tarefa tripla é realizada:
- integrar serviços para a primeira infância em todas as áreas do sistema de saúde, desde a capacitação dos prestadores de serviços, até a assistência e supervisão, assegurando a coleta de dados relevantes pelos sistemas de informação
- expandir a base de dados de integração do setor de saúde de programas para a primeira infância em contextos de poucos recursos e disseminar as conclusões
- promover um ambiente positivo incluindo conteúdos sobre o desenvolvimento da primeira infância em políticas, diretrizes, programas de treinamento, orçamentos e planos de trabalho governamentais.
Entre 2011 e 2017, a PATH implantou na África do Sul um grande programa de fortalecimento de sistemas de saúde, no qual o desenvolvimento da primeira infância era uma componente chave do pacote mínimo de serviços prestados em escala comunitária. A PATH atualmente apoia os esforços dos governos da Costa do Marfim, Quênia, Moçambique e Zâmbia para expandir os serviços de desenvolvimento da primeira infância integrados aos sistemas de saúde. Vale destacar que a PATH contribuiu para a integração do cuidado afetivo em 11 sistemas distritais de saúde no Quênia e em Moçambique. Ambos os países estão expandindo a escala de integração, com o objetivo de atingir uma população de pelo menos 2 milhões de pessoas até 2020. Ao implantar essa abordagem, a PATH trabalha em estreita colaboração com os formuladores de políticas, a equipe técnica e a sociedade civil para alinhar as intervenções com as estruturas e os recursos existentes, e para garantir que o governo esteja sempre no comando da ação.
Estabelecendo sistemas sólidos de prestação de serviços de cuidados afetivos
Os trabalhadores da área da saúde frequentemente são os primeiros e únicos provedores de serviços que interagem periodicamente com crianças menores de 3 anos e seus cuidadores. O objetivo da PATH é fornecer a eles o treinamento, as ferramentas e os recursos necessários para integrar o cuidado afetivo nos serviços de saúde, tanto nas comunidades como nos centros de saúde. Primeiro, a PATH cria um quadro de supervisores e instrutores do governo, incorporando conteúdos sobre o desenvolvimento da primeira infância na formação referente aos pacotes padrão de cuidados, como o Gerenciamento Integrado de Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI) da OMS. Além de rentável, esse modelo melhora o controle governamental e reforça a inclusão do cuidado afetivo como componente essencial do sistema de saúde.
Uma vez treinadas, essas equipes capacitam os prestadores de serviços a integrar em seu trabalho diário conteúdos sobre cuidado afetivo: nos atendimentos de pré-natal e pós-natal, vacinações infantis e monitoramento das fases de crescimento, e em serviços pediátricos e intervenções comunitárias. A equipe do centro de saúde, por exemplo, aprende a assessorar as atividades lúdicas e de comunicação adequadas à cada idade, para avaliar os estágios do desenvolvimento e encaminhar as crianças a outro profissional em caso de indícios de atraso. Os prestadores de serviços comunitários também interagem com crianças e cuidadores em visitas domiciliares e sessões estruturadas de brincadeiras nas salas de espera dos centros de saúde.
Capacitar os provedores de serviços é apenas o primeiro passo. A PATH também colabora com uma estrutura de mentoria, cujos mentores observam a equipe durante as tarefas de assessoramento aos cuidadores, orientando-os sobre como melhorar os pontos fracos detectados. No Quênia e em Moçambique, trabalhamos em sintonia com o governo para incorporar formalmente a supervisão do desenvolvimento da primeira infância ao sistema de saúde, atualizando as ferramentas e as normas da supervisão de apoio.
Reforçar a coleta de dados e o aprendizado para o desenvolvimento da primeira infância no setor da saúde
Ainda é limitada a base de dados sobre a prestação de serviços orientados ao desenvolvimento da primeira infância no setor de saúde, e muitos dos estudos existentes podem não ser aplicáveis, porque são realizados em ambientes de pesquisa rigidamente controlados. Além disso, poucas pesquisas concluídas até o momento se concentram na África subsaariana. A PATH está trabalhando para suprir essas lacunas. Em Moçambique, realizamos três avaliações sobre a viabilidade e a aceitação da integração de conteúdos de cuidado afetivo em visitas domiciliares e nos serviços prestados nos centros de saúde, bem como na implantação de sessões de brincadeiras nas áreas de espera dessas instalações. Pelo que descobrimos, não só a integração é viável em ambientes com poucos recursos, como também, melhora a percepção dos cuidadores sobre a qualidade do serviço oferecido à população. Isso gerou a vontade política de ampliar tais serviços integrados em escala nacional, além de despertar interesse de outros países.
Trabalhando com parceiros locais no Quênia, a PATH está conduzindo mais pesquisas para avaliar o impacto da integração do setor de saúde nos conhecimentos, atitudes e práticas dos cuidadores, bem como nos resultados do desenvolvimento e no crescimento infantil. O estudo avaliará a rentabilidade da integração e oferecerá conclusões que possam permitir a expansão esperada para mais países e regiões, sob a responsabilidade dos governos nacionais.
Criação de um ambiente político positivo
Vontade política e compromisso de governo em todos os níveis são elementos essenciais para integrar em larga escala os serviços orientados à primeira infância dentro do sistema de saúde de um país. Por meio de ações de advocacy, a PATH busca integrar o cuidado afetivo às diretrizes e políticas nacionais relevantes. No Quênia, por exemplo, as estratégias e diretrizes de saúde infantil se concentravam anteriormente na sobrevivência da criança. A PATH defendeu o desenvolvimento de uma Política de Saúde Neonatal, Infantil e do Adolescente como um guia abrangente para todos os serviços de saúde infantil, e assegurou que a política incluísse conteúdos sobre o cuidado afetivo para as crianças desde o nascimento até a idade de 3 anos.
Para passar da mudança de política para a prestação de serviços é essencial modificar os currículos e as ferramentas de apoio ao trabalho. Em Moçambique os esforços de advocacy da PATH resultaram na inclusão de conteúdos de desenvolvimento para a primeira infância nos currículos de treinamento básico de enfermeiros e agentes comunitários de saúde, que estão agora sob revisão. Isso é particularmente importante para a sustentabilidade e para alcançar escala, já que treinar profissionais já em serviço é dispendioso. A PATH também tem se empenhado em facilitar uma série de consultas no Quênia e em Moçambique com o intuito de promover a integração do conteúdo sobre aconselhamento e monitoramento do desenvolvimento nos programas revisados da AIDPI, que orientam a prestação de serviços de saúde.

Por fim, a PATH defende integrar os serviços de cuidado afetivo aos sistemas habituais de coleta de dados. Por exemplo, trabalhamos com o Ministério da Saúde de Moçambique para revisar os registros de dados sobre saúde das crianças e mães para incluir indicadores relevantes. O significado dessa mudança é muito importante por duas razões: primeiro, permitirá que o governo e outras partes interessadas acompanhem – pela primeira vez – o número de crianças que recebem serviços direcionados à primeira infância, bem como daquelas que apresentam provável atraso no desenvolvimento; em segundo lugar, uma ferramenta formalmente aprovada pelo Ministério da Saúde ajuda os provedores de serviços a considerar o desenvolvimento da primeira infância como parte de seu trabalho de rotina, em vez de uma intervenção promovida por um parceiro externo com uma coleta de dados paralela.
Impulso global e compromisso nacional
Tanto nos níveis global e nacional, uma mudança de perspectiva é clara: cada vez mais o desenvolvimento da primeira infância é visto como um importante fator do setor de saúde. Muitos governos estão prontos para liderar a introdução ou a expansão do cuidado afetivo no sistema de saúde e preparados para aportar recursos para a agenda da “prosperidade”. O sistema da PATH oferece um roteiro para governos e parceiros interessados neste trabalho.
Reconhecemos que não é possível revisar os sistemas de saúde da noite para o dia. No entanto, os últimos estudos científicos, a liderança dos países e uma comunidade global coordenada são fatores que facilitam avanços importantes quando se trata de alcançar crianças pequenas e seus cuidadores.
As referências podem ser encontradas na versão em PDF do artigo.