Temos visto na América Latina uma rápida expansão dos serviços de cuidados infantis com financiamento público, voltados para menores de 3 anos de idade. Embora o emprego materno possa aumentar a renda das famílias – o que favorecerá o bem-estar das crianças –, essa nova realidade dos cuidados da primeira infância levanta questões políticas importantes.

Em países como Brasil, Chile, Colômbia, Equador e Uruguai, aos 3 anos de idade pelo menos 40% das crianças usam serviços de cuidado infantil. Em alguns desses países, crianças com dois anos de idade também usam tais serviços com frequências semelhantes.

O aumento da procura de serviços de cuidado infantil responde, em parte, à evolução demográfica das famílias latino-americanas, caracterizada por um aumento da urbanização, famílias extensas ou ampliadas mais reduzidas e a um aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho. Entre 1999 e 2014, a participação das mulheres na força de trabalho aumentou de 58% para 65% na América Latina (Duryea e Robles, 2016). Essa mudança pode ser observada em todos os níveis de escolaridade, e também entre mulheres com filhos com menos de 5 anos de idade (Berlinski e Schady, 2015).

O que é o cuidado infantil de alta qualidade?

Há muitos estudos que tratam sobre os principais elementos que compõem o cuidado infantil de boa qualidade. Especialistas costumam distinguir entre elementos estruturais de qualidade e qualidades do processo. A qualidade estrutural se refere à infraestrutura, à disponibilidade de materiais, à qualificação do pessoal responsável pelas crianças e os índices que medem a quantidade de cuidadores por crianças. A qualidade do processo foca na natureza das interações entre os cuidadores e as crianças. Para crianças pequenas, as interações de alta qualidade precisam ser frequentes, responsivas a seus interesses, ricas em linguagem, calorosas e sensíveis às suas necessidades. A qualidade estrutural é importante para garantir condições adequadas de segurança e higiene. Além disso, a qualidade estrutural e a qualidade do processo estão inter-relacionadas: por exemplo, em um ambiente com poucos cuidadores por criança, torna-se mais difícil fornecer interações frequentes e individualizadas. A pesquisa sugere que a qualidade do processo é crucial para que os serviços de cuidado infantil logrem alcançar resultados de desenvolvimento infantil que possam ser sustentados ao longo do tempo. Em outras palavras, a qualidade do processo é algo que não deve ser comprometido. No entanto, a evidência disponível na América Latina não é encorajadora, pois sugere níveis extremamente baixos de qualidade do processo (Berlinski e Schady, 2015).

A associação entre qualidade do cuidado e desenvolvimento infantil

Em um artigo recente, eu e meus colegas exploramos a relação entre a qualidade do processo e os resultados do desenvolvimento infantil (Araujo et al., 2017). Analisamos os dados do maior fornecedor de serviços de cuidado infantil com financiamento público em áreas urbanas do Peru, o programa “Cuna Más”. A qualidade do processo foi medida no plano da sala de aula. Nós tínhamos informações sobre o nível de qualidade de duas salas de aula em cada um dos 291 centros estudados. Administramos o Toddler Classroom Assessment Scoring System (CLASS) (La Paro et al., 2012), um instrumento bem conhecido que tem sido usado na América Latina com o intuito de medir a qualidade do processo em sala de aula. O foco do CLASS é a interação adulto-criança. Além disso, visitamos as crianças dessas salas em suas casas, onde administramos os domínios resolução de problemas, habilidades motoras finas e comunicação do Ages and Stages Questionnaire, terceira edição (ASQ-3) (Squires et al., 2009), um teste de rastreamento que identifica o progresso do desenvolvimento em crianças entre as idades de um mês a 5 anos e meio, e que tem sido usado na região em vários estudos de escala.

Nós comparamos a qualidade do processo e o desenvolvimento infantil de crianças de diferentes salas da mesma escola, e descobrimos que uma criança exposta a uma sala de aula com um cuidador que ofereceu um desvio padrão maior de qualidade do processo teve resultados de desenvolvimento que foram 7% de um desvio padrão maior em magnitude. Também descobrimos que os cuidadores com mais anos de educação não eram mais efetivos na promoção de um melhor desenvolvimento da criança, mas aqueles que tinham mais anos de experiência eram.

14.-Page-68_-IMG_8013-700x467

Foto: Cortesia do programa Cuna Más

Como os programas podem promover a expansão de serviços de cuidado infantil com qualidade?
  • Não ter pressa em expandir a cobertura se não houver uma estratégia de oferecimento de serviços com qualidade. Em muitos países da América Latina, a cobertura dos serviços de educação foi expandida rapidamente sem um foco na qualidade. Esta não é uma boa ideia para serviços de cuidado infantil. A evidência sugere que os serviços com baixa qualidade para crianças menores de 3 anos não são inócuos, já que eles podem, de fato, ter impactos negativos no desenvolvimento da criança (Berlinski e Schady, 2015). Portanto, a expansão da cobertura deve ser planejada lado a lado com os esforços voltados para a melhoria e a consolidação da qualidade.
  • Eleja bem os objetivos. A conclusão fundamental de estudos sobre serviços de cuidado infantil de alta qualidade que produziram impactos em longo prazo na educação e no emprego, é que tais serviços foram desenhados para crianças de famílias muito pobres e vulneráveis. Embora a América Latina tenha desenvolvido sofisticados sistemas de segmentação para alguns de seus programas sociais, nem sempre estes são utilizados em serviços administradas pelo setor público. As crianças das famílias mais desfavorecidas são as mais propensas a vivenciar ambientes domésticos de baixa qualidade, pobres em estimulação e em oportunidades de aprendizagem. É precisamente este grupo de crianças que se beneficiaria mais com serviços de cuidado infantil de qualidade.
  • Oferecer boas condições de trabalho. A equipe que atua em centros de educação infantil geralmente trabalha em condições precárias. Muitos programas não mantêm uma relação formal de trabalho com seus funcionários, não pagam salários, nem oferecem outros benefícios. Uma parte considerável da força de trabalho doa parte de seu tempo de forma voluntária. Em condições assim, qualidade e responsabilidade não são possíveis de se obter. Cuidadores experientes e eficazes são incentivados a deixar o setor em busca de melhores empregos no setor privado.
  • Mentoria. Oferecer um cuidado caracterizado por interações de boa qualidade, frequentes e consistentes, entre adulto e criança, é algo que pode ser aprendido. Sistemas de mentoria têm sido colocados em prática, trabalhando individualmente com cuidadores na construção dessas competências. São sistemas que requerem mentores qualificados, que podem engajar os cuidadores e conquistar sua confiança. A mentoria deve ser o cerne das estratégias de formação continuada aos prestadores de serviços. São necessárias mais pesquisas para descobrir quais são os mecanismos mais eficazes para fornecer mentoria em escala.
  • Melhoria contínua da qualidade. Os programas sociais estão fazendo uso da tecnologia para simplificar muitos processos operacionais. A melhoria contínua da qualidade baseia-se em dados em tempo real que podem desencadear ações na sequência. Quatro elementos-chave devem estar presentes para que um sistema de melhoria da qualidade funcione: a definição de resultados específicos a serem alcançados; concordância sobre como eles serão medidos; identificação das mudanças necessárias para alcançar esses resultados; e um ciclo de inovação e aprendizagem contínua que se ajuste dinamicamente.
  • Formação prévia. A América Latina não está produzindo suficientes profissionais da primeira infância para fazer frente às demandas em expansão desse setor. Pode ser necessário ainda alinhar as habilidades oferecidas pelos programas de treinamento do ensino superior com as melhores práticas de campo. Serviços de alta qualidade em escala requerem uma coordenação orgânica com os serviços de ensino superior encarregados de capacitar a força de trabalho do futuro.
  • Currículos e diretrizes do aprendizado nos primeiros anos. Os currículos desempenham um papel fundamental na obtenção da qualidade do processo, pois eles refletem um consenso em torno dos resultados. Eles também alinham os esforços nas áreas de treinamento, monitoramento e avaliação que são necessários para alcançar tais resultados. Os currículos ajudam o trabalho diário dos cuidadores, particularmente em ambientes com pouca capacidade, onde eles fornecem atividades estruturadas e materiais para as crianças sob seus cuidados que são adequados à idade e podem promover oportunidades para aprender e explorar.
  • Mantenha o foco na qualidade do processo. Ninguém irá argumentar contra a necessidade de instalações seguras que propiciem às crianças pequenas um atendimento em condições que garantam sua saúde, segurança e bem-estar. No entanto, o foco dos esforços contínuos de melhoria da qualidade deve permanecer nos aspectos dos processos de qualidade, o que não é uma escolha fácil, pois políticos poderiam preferir a publicidade proveniente da inauguração de novos centros. Assim, os consultores técnicos e acadêmicos precisam unir forças com as famílias, organizações da sociedade civil e comunidades para garantir que o foco dos esforços de melhoria da qualidade permaneça onde mais importa: em oferecer às crianças pequenas interações diárias que sejam frequentes, calorosas, receptivas, ricas em linguagem e sensíveis às suas necessidades.

As referências podem ser encontradas na versão em PDF do artigo.

Chapters
Chapters